Artigo
A democracia segundo Lacerda
Posse do Conselho Municipal de Cultura na PBH começa com uma lição de truculência e termina com uma aula (prática) sobre autoritarismo
Victor GuimarãesPosse do Conselho Municipal de Cultura na PBH começa com uma lição de truculência e termina com uma aula (prática) sobre autoritarismo
Já na chegada ao prédio da Prefeitura, o primeiro sinal dos tempos tenebrosos em que vivemos. Ao contrário do que constava no convite da cerimônia, em lugar das portas abertas para a chegada dos convidados na portaria principal do prédio, a fachada da PBH ostentava uma grotesca corda de isolamento, que ajudava a compor o cenário já marcado pelas tradicionais correntes, por uma dezena de guardas municipais e pelas portas eternamente fechadas. Do fundo da cena, a primeira ordem do dia (e a primeira lição de democracia lacerdiana): querem entrar? Só pela porta dos fundos.
Na portaria da rua Goiás, a segunda lição. A cerimônia é pública, o prédio é público, mas a entrada do cidadão depende da cor da camiseta. Se estiver de laranja, não pode simplesmente entrar, assim, sem mais nem menos. No livro de etiqueta da Prefeitura – que muitos insistiram em chamar com o pomposo nome de “democracia” durante todo o evento – há uma regra tácita, que diz que a entrada de alguns cidadãos num prédio público – entre eles, três conselheiros eleitos – deve ser barrada pela guarda municipal. Com todas as portas fechadas e bem guardadas, foi impossível entrar na PBH durante 40 minutos. Quando foi possível entrar, foi por uma porta entreaberta, um por um, como gado no curral. Por quê? Ah, não, no livro de regras não consta um comando para dar explicações.
Começada a cerimônia, as falas protocolares foram se alternando. A platéia ouvia, com bastante atenção e em silêncio. Nos intervalos de cada fala, alguém aproveitava para esboçar uma crítica às atrocidades da gestão Lacerda, as vaias aconteciam naturalmente (como em todos os eventos culturais recentes que contaram com a presença do prefeito ou de secretários). Não vale a pena deixar de mencionar, uma vez mais, que o evento era público e celebrava uma conquista democrática da sociedade civil. Uma conquista que não se fez com silêncio, mas com muito barulho. Que não se fez só com os ouvidos, mas com todo o corpo e todos os desejos saudáveis de uma cidade melhor. Haveria maneira mais democrática de se celebrar uma conquista como essa do que com uma manifestação concreta da pluralidade de vozes e de visões existentes na cidade?
Mas foi então que os verdadeiros professores de democracia assumiram a palavra. A deputada estadual Luzia Ferreira começou a ironizar a presença de manifestantes do Movimento Fora Lacerda no local e a desqualificar sua atuação crítica, insistindo na tese de que democracia é o respeito às regras, à burocracia, aos lugares instituídos. Resultado: as vaias aumentaram, vários cidadãos reagiram ao tom professoral da deputada e começaram a expressar seu descontentamento com o que era dito.
Um desses indignados, o coordenador da Associação dos Expositores da Feira da Av. Afonso Pena (e conselheiro municipal de cultura eleito) Alan Vinícius, disse em voz alta: “Lacerda, sua política de higienização da cidade acabou”. Nesse momento, visivelmente alterado, o prefeito reagiu à manifestação com a lição mais contundente de sua cartilha democrática: ordenou que os seguranças o retirassem, imediatamente e à força, do local. Alan foi arrastado por dois homens para fora do recinto, sob os protestos de muitos dos presentes.
A confusão instaurada pela ordem do prefeito foi grande. Tudo aconteceu muito rápido, mas houve gritaria, protestos, ânimos exaltados. A atitude fascista de Lacerda acendeu o pavio no ambiente já tenso e despertou as oposições mais ferozes. Muitos lembravam ao prefeito de que o cidadão expulso do auditório era um conselheiro legitimamente eleito e prestes a tomar posse. Muitos pediam a volta de Alan, para que a cerimônia pudesse continuar. O prefeito, atônito, parecia não se dar conta da própria atitude.
Depois de uma fala apaziguadora do vereador Arnaldo Godoy – a única fala institucional a considerar o Movimento Fora Lacerda como legítimo até então –, Alan foi chamado de volta ao auditório. Com os ânimos da platéia um pouco menos exaltados, o professor titular de democracia, Márcio Lacerda, se dirigiu à tribuna.
O discurso de Lacerda merecia entrar para os anais da história política de Belo Horizonte. Na posse do Conselho Municipal de Cultura, nenhuma palavra foi dita sobre a situação da cultura na capital, a importância de um órgão como esse, as perspectivas do setor para os próximos anos. As lições que compunham a aula eram mais importantes.
Fazendo coro a alguns de seus colegas de tribuna, Lacerda começou dizendo que precisávamos ser mais civilizados. Faltava civilidade por parte da platéia do evento. Inversão conceitual ousada, essa do professor Lacerda. Todos sabemos que, na Grécia Antiga, terra da origem da democracia, o que distinguia os bárbaros dos civilizados era justamente o uso da palavra, o uso da razão em detrimento da força. Na cartilha de Lacerda, os conceitos mudam: na PBH, bárbaros são os que falam; os que usam a força são os civilizados.
A segunda lição era menos ousada conceitualmente, mas mais conectada ao pensamento institucionalista dos líderes atuais. Lacerda se dignou a dar duas sugestões àqueles que discordam de sua maneira de governar: 1) entrar com um pedido de impeachment junto aos vereadores na Câmara Municipal; 2) propor uma candidatura própria para derrotá-lo nas próximas eleições. De acordo com a concepção lacerdiana de democracia, as únicas formas de protesto contra uma administração autoritária, elitista e desumana passam por instituições que estão atreladas a essa mesma lógica sistêmica: a câmara municipal, completamente ocupada por aliados do prefeito; e os partidos políticos, cuja discrepância de orçamento para realizar campanhas milionárias todos conhecemos. Não deixa de ser admirável um pensamento tão orgânico: para Lacerda, as únicas opções democráticas de oposição disponíveis integram o mesmo sistema que mantém a atual gestão em funcionamento. O espaço público, comunicação, a rua, a livre manifestação de idéias? Isso não é democracia. Tudo o que escapa aos muros das instituições ou dos partidos não entra na lista. Quanta clareza conceitual! Quanta simplicidade! Quanta concisão!
Mas faltava ainda a última lição. O professor guardou para o final o último grande pensamento, recheado com uma pitada autobiográfica e com uma crítica mordaz aos opositores, bem ao gosto daqueles alunos que sentam na primeira fila. Lacerda finalizou o discurso dizendo que era representante daqueles que lutaram para trazer de volta a democracia ao país. Daqueles que se sacrificaram para construir aquilo que alguns membros da platéia estavam ameaçando de destruição. Nas entrelinhas, era possível ler que a democracia construída por ele e por seus heróicos companheiros era exatamente o que se via ali, naquele auditório: um punhado de engravatados grisalhos falando no microfone, enquanto a massa só tinha direito a escutar, sob pena de ser retirada a força do recinto. A aula se tornava clara como água: democracia é a fala protocolar, o aplauso, o terno e gravata, a porta fechada para os indesejáveis, o respeito à autoridade (que manda sair e manda voltar), as bem traçadas linhas das instituições. A vaia, o protesto espontâneo, a fala autônoma no espaço público, a criatividade e as roupas festivas são outra coisa. São o fora-de-campo da democracia legítima, essa praticada na PBH.
Ao fim da aula, todos os alunos se retiraram e foram pra casa pensar no que disse o professor. Quanto a nós, seguimos acreditando em algumas outras coisas. Entre elas, que a democracia não é um conjunto de regras (de etiqueta ou de conduta) estanques que, ao menor sinal de indignação, servem de plataforma para a materialização do autoritarismo mais descarado. Ela tampouco é um jogo de cartas marcadas, com um conjunto limitado de sujeitos autorizados a agir e de opções disponíveis, onde a criatividade e a invenção não têm lugar. E, talvez principalmente, ela não é uma herança legada a nós, pobres e tolos jovens, por uma elite política iluminada (e velha).
Acompanhe nesse vídeo enviado por OTEMPOonline um trecho da confusão
A democracia começa, de novo, a cada vez que uma voz se ergue e se espalha no espaço público, instaurando o dissenso e embaralhando as cartas do jogo vigente. Foi assim na Grécia Antiga ou no Egito contemporâneo, na França de junho de 1789 ou de maio de 1968. Democracia não é a fala autorizada, em lugar e hora determinados, mas é justamente a ruptura da ordem convencional de validade das falas: é precisamente o momento em que uma fala anônima e pública, sem cabimento, ousa caber onde não cabe.